Os avanços da renda básica e o declínio do liberalismo durante a pandemia (COVID-19) ou "Para quem tem fome, a ideologia está muito longe."

Alex Paulo Teixeira de Souza

Eliene Londero

Glaucos Luis Flores Monteiro

Walker de Barros Dantas

 

    A pandemia (COVID-19) além de ser uma grave crise sanitária mundial, está nos revelando um problema ainda maior que se encontra nos bastidores dessa crise — a dimensão geopolítica e econômica da nova ordem mundial. Essa problemática tem dois personagens principais, os EUA e China, que vivem uma espécie de “nova guerra fria”, mas, dessa vez, ela não é bélica, e se concentra na disputa pelo mercado financeiro global. Segundo o site Jornal de Negócios em matéria veiculada no dia 19 de julho de 2020:

 

O impasse atual entre os EUA de Donald Trump e a China de Xi Jinping foi comparado ao "sopé" de uma nova Guerra Fria pelo ex-secretário de Estado americano, Henry Kissinger, em novembro. Para o historiador Niall Ferguson, essa previsão já se concretizou. A eventual chegada de Joe Biden à Casa Branca dificilmente reverterá a deterioração nas relações entre EUA e China, segundo a maioria das análises (JORNAL DE NEGÓCIOS, 2020).

 

Esse impasse foi agravado assim que os primeiros casos de Covid-19 surgiram na China em 2019, e com expansão e a proliferação desse vírus pelo mundo, os EUA criaram uma tese que esse vírus poderia ser uma arma biológica feita num determinado laboratório chinês: “Os primeiros casos ocorreram na China e logo alimentaram a já tensa disputa geopolítica entre este país e os Estados Unidos (EUA), com acusações mútuas sobre a possibilidade de o vírus ser uma arma biológica” (RODRIGUES e GERZSON, 2020, p. 1).

 

Deste modo, a “nova guerra fria” começou a esquentar entre EUA e China, pois, esses atores com amplo poder de atuação no mercado financeiro global iniciaram um jogo de especulações e transações financeiras que atingiram todo o setor econômico global. Na análise de Medcalf (2020) EUA e China são os principais jogadores da globalização, e os “intermediários” seriam Índia, Austrália, Japão e Europa, porém, a China vem ocupando lugar destaque na economia mundial, e possivelmente daqui algum tempo, será a maior economia do planeta. Assim, os EUA estariam tentando barrar de todas as formas, essa ascensão significativa da China no mercado financeiro global.

 

De acordo com Rodrigues e Gerzson (2020), conforme citado por (ORTEGA; MARÍN, 2020): “A disputa política e ideológica entre os dois países adquire, por vezes, caráter dramático e ofensivo. No final de janeiro deste ano, por exemplo, Mike Pompeo, Secretário de Estado americano, chamou o Partido Comunista da China de [a ameaça central de nossos tempos]”.

 

Do outro lado desse jogo de força, estão milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social, cidadãos do mundo inteiro estão sofrendo os efeitos devastadores que a pandemia (COVID-19) está causando na área da saúde, e principalmente no mercado de trabalho, fazendo com que todos os dias milhares de postos de trabalhos sejam fechados ao redor do mundo. O Brasil, com seus 210 milhões de habitantes e território de dimensões continentais, oferece o exemplo mais eloquente da terrível calamidade que é, em termos econômicos e políticos, ter parte da população entre as disputas de poder.

 




Esta semana saiu o resultado da pesquisa Datafolha sobre a percepção da população em relação ao governo executivo. Segundo o Datafolha, “37% dos brasileiros consideram seu governo ótimo ou bom, ante 32% que o achavam na pesquisa anterior, feita em 23 e 24 de junho”. Isso implica em uma popularidade do Governo Bolsonaro nunca antes tão alta e, o que é mais surpreendente, em meio à pandemia. O que pode ter gerado um inquieto e persistente burburinho de vozes na rede que chamava a parcela demográfica que aprovava o governo de “ignorante” ou “burra”.

Enquanto alguns analistas tentam entender o que causou essa repentina melhoria da curva de aprovação do Presidente, outros se voltaram para a questão da evidente cisão social que se vive no país e que, se em muito antecede a pandemia, ficou mais evidenciada após a eclosão da crise que já causou a morte de mais de 100 mil brasileiros e de três milhões e meio de casos confirmados. Segundo pesquisa do IBGE divulgada em outubro do ano passado, 10% da população concentram 43% da massa de rendimentos do país. E que o “rendimento médio do 1% mais rico da população é 33,8 vezes o rendimento dos 50% mais pobres”. O que torna o Brasil um dos países mais desiguais do mundo.

O governo brasileiro percebendo que a saída para amenizar a grave crise financeira e reaquecer a economia era incentivar o consumo, sancionou no dia primeiro de abril de 2020 o Projeto de Lei 9236/17, o auxílio emergencial, dessa forma deixando os princípios liberais defendidos por Paulo Guedes à época da campanha de lado. “Para o vereador paulistano e ex-senador Eduardo Suplicy (PT), defensor obstinado do conceito, é chegada a hora da implementação da renda básica de cidadania. Sua proposta já é tema de lei (Lei 10.835) desde 2004, mas depende da vontade política do Poder Executivo para ser implementada” (RBA, 2020). A ironia é que, portanto, durante a pandemia (COVID-19) a solução política adotada pelo governo brasileiro para enfrentar essa grave crise está pautada na agenda do socialismo, algo combatido e excluído do norte neoliberal, sendo que, já foram aplicados mais de R$ 88 bilhões de reais na economia brasileira pelo mecanismo do auxílio emergencial.

Para Brum a questão da aprovação ascendente do presidente se liga à mera ajuda que uma parcela extremamente carente da população recebeu em um momento de urgente necessidade. Cobrar rigor ideológico e posicionamento político de quem não sabe se terá o que comer no dia de amanhã é, portanto, parte do problema. Ainda:

A redução da miséria e da pobreza, conquistada nos anos dos Governos do PT (...), foi imensamente importante, mas suficiente apenas para reduzir a fome e garantir melhorias pontuais, como acesso a bens básicos como geladeira e fogão. (...). A questão, que já era apontada na primeira década deste século, é que jamais foi suficiente para criar cidadãos, no sentido daquilo que é definido como sujeitos de direitos. Para criar cidadãos é necessário reduzir a desigualdade, o que nunca foi feito de forma significativa no Brasil.

(...)

Há muitas definições de cidadania. Eu gosto daquela que define o cidadão como aquele que pode ter a certeza do básico (...) e então pode ser capaz de imaginar e criar futuros onde quer viver porque o seu tempo não é devorado pela estrita manutenção do corpo, mas para desenvolver seu potencial para a ampliação do bem comum.

 

A analista e pesquisadora Esther Solano da USP traz maior esclarecimento à questão política quando diz que: “Há dois pontos essenciais para o aumento de popularidade de Bolsonaro. O primeiro é a renda emergencial, que tem maior impacto entre os mais pobres. (...) E outro ponto que aparece muito nas pesquisas é a questão da "moderação" do Bolsonaro. Ainda segundo a cientista social, professora da USP (Universidade de São Paulo) que estuda conservadorismo no Brasil:

A gente entrevista os mais pobres, e o que você vê é que a pandemia não é só uma questão de crise sanitária, é uma questão de crise econômica para muita gente. Há muita gente que perdeu o emprego e está desesperada. Há muita gente no Nordeste que não recebe essas ajudas clássicas do PT, porque foram cortadas pelas políticas de corte orçamentário de (Michel) Temer e depois do Paulo Guedes (atual ministro da Economia). Para quem está na situação de pobreza ou desemprego, R$ 600 é diferença entre comer e não comer, né? A maioria não sabe que a medida é de autoria da oposição. Então é muito pedir para que as pessoas façam opções ideológicas. Quando você está à beira da fome, sua vida está pautada por coisas muito mais concretas e mais de subsistência do que de estratos ideológicos. Então não se deve falar que pobre de direita é burro, porque muitos desses pobres votaram no PT, se declaravam lulistas até pouco tempo atrás. Muito pouco mudou neste estrato, o que mudou foi a estratégia do Bolsonaro. Ele entendeu que num momento como o atual um subsídio emergencial é extremamente importante para as pessoas e pode fazer com que sua popularidade aumente. Para quem tem fome, a ideologia está muito longe.

Noam Chomsky, em Réquiem para o sonho americano: Os dez princípios de concentração de renda e poder (2017) abordará no sexto princípio a ideia de que as agências reguladoras foram criadas pelas próprias empresas, ou seja, para proteger seus interesses, seu oligopólio da entrada de novos competidores. Dessa forma, a estratégia seria efetivada através do lobby que as empresas executam na capital Washington, ou seja, do poder de influência política que os empresários têm com o governo americano. “A última crise econômica, em 2008, mostrou bem porque é importante para a plutocracia controlar os reguladores. Num sistema verdadeiramente capitalista, as crises econômicas acabariam com os investidores que fizeram escolhas de alto risco. Mas não é isto que a elite quer” (CHOMSKY, Noam, Requiem for the American Dream, 2015, como citado em O CAFEZINHO, 2016).

Requiem for the American Dream (2015)

No Brasil onde atividades lobistas não foram regularizadas, vemos o mesmo princípio denunciado por Chomsky quando o presidente Jair Bolsonaro e um grupo de empresários foram do Palácio do Planalto até o Supremo Tribunal Federal (STF) para uma reunião com o ministro Dias Toffoli:

“Em um breve discurso na reunião, o presidente disse que a crise provocada pelo coronavírus levou "aflições" a empresários em razão do desemprego e da economia "não mais funcionar". Ainda no discurso, Bolsonaro disse que o efeito colateral do combate ao coronavírus "não pode ser mais danoso que a própria doença". (...) Segundo o presidente, os empresários querem que o STF ouça deles o que está acontecendo. Bolsonaro disse também que o grupo de empresários levado por ele ao Supremo está preocupado com um eventual colapso da economia. O presidente afirmou que assinou um novo decreto que inclui a construção civil na lista de atividades essenciais, ou seja, que podem funcionar durante a pandemia do novo coronavírus” (G1, 2020).

Mediante ao contexto narrado em linhas acima, a tese de Chomsky (2017) mais uma vez está comprovada, onde os empresários pressionam o governo para que o financeiro seja preservado. Por outro lado, podemos perceber o quanto o capitalismo é frágil e dependente de uma certa normalidade financeira para o sucesso do capital seja efetivado e válido no contexto da globalização.

 

 

REFERÊNCIAS

Bolsonaro vai a pé com ministros e empresários ao STF e apela por redução de medidas restritivas. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/07/bolsonaro-atravessa-praca-dos-tres-poderes-a-pe-e-vai-ao-stf-acompanhado-de-ministros.ghtml Acesso em: 22/08/2020.

Brasil tem 2ª maior concentração de renda do mundo, diz relatório da ONU https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/09/brasil-tem-segunda-maior-concentracao-de-renda-do-mundo-diz-relatorio-da-onu.ghtml Acesso em: 23/08/2020.

Chomsky, Noam, Requiem for the American Dream (2015). Direção de Peter Hutchison.Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=wp6Rbgv1MLg&t=2137s Acesso em: 22/08/2020.

Coronavírus: ´Chegou a hora de implementar a renda básica de cidadania’, diz Suplicy. Disponível em: redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/03/coronavirus-renda-basica-suplicy/. Acesso em: 22/08/2020.

Dados covid obtidos no site World Meters https://www.worldometers.info/coronavirus/ Acesso em: 23/08/2020.

Nova ordem mundial ganha forma na era do coronavírus. Disponível em: https://www.jornaldenegocios.pt/economia/mundo/detalhe/nova-ordem-mundial-ganha-forma-na-era-do-coronavirus Acesso em: 22/08/2020.

O “gado humano” que Bolsonaro leva ao matadouro — Eliane Brum. 19 de agosto de 2020. Site El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-19/o-gado-humano-que-bolsonaro-leva-ao-matadouro.html#?sma=newsletter_brasil_diaria20200820  Acesso em: 23/08/2020.

O discurso de que 'pobre de direita é burro' é preconceituoso e revela falta de empatia com a situação que grande parte da população passa, diz pesquisadora — BBC Brasil em São Paulo https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53788197?utm_source=meio&utm_medium=email  Acesso em: 23/08/2020.

Os 10 princípios da concentração de riqueza e poder da plutocracia. Disponível em: https://www.ocafezinho.com/2016/05/18/os-10-principios-da-concentracao-de-riqueza-e-poder-da-plutocracia-ou-requiem-para-um-sonho-americano/. Acesso em: 22/08/2020.

PNAD Contínua 2018: 10% da população concentram 43,1% da massa de rendimentos do país https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25700-pnad-continua-2018-10-da-populacao-concentram-43-1-da-massa-de-rendimentos-do-pais Acesso em: 23/08/2020.

RODRIGUES, Paulo de Almeida; GERZSON, Lusiana Chagas. A dimensão geopolítica da pandemia de coronavírus. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/physis/v30n2/0103-7331-physis-30-02-e300209.pdf. Acesso em: 22/08/2020.

Trabalhador morre em supermercado no Recife, corpo é coberto por guarda-sóis, e local continua funcionando. https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/08/19/representante-de-vendas-morre-em-supermercado-no-recife-e-corpo-e-coberto-por-guarda-sois.ghtml Acesso em: 23/08/2020.

Veja quem puxa crescimento da aprovação a Bolsonaro segundo pesquisa Datafolha.  https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/08/veja-quem-puxa-crescimento-da-aprovacao-a-bolsonaro-segundo-pesquisa-datafolha.shtml Acesso em: 22/08/2020.

 

Comentários

  1. Citações bem colocadas, inclusão de imagem e o grupo inovou novamente com a inclusão de um vídeo. Parabéns.
    Peço apenas que garantam - nos próximos exercícios - que todos os textos apresentados nas referências finais estão inclusos e referenciados no texto produzido

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  2. O governo do Brasil não tem políticas públicas adequadas as necessidades diante de uma pandemia tem levado o país a uma certa crise politica-econômica sem precedentes.

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  3. Excelente abordagem, uma cosmovisão de geopolítica contextualizada. Parabéns

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