PANDEMIA E POLITICA; OS PERIGOS DE UM ANTAGONISMO

 

 

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA – ECCO

 

 

Disciplina: Métodos para Pesquisas.

Ministrada pela Profª Drª Andréa Ferraz Fernandez em Ensino a Distância (EaD) – 2020/1, no período de 12/08/2020 a 25/09/2020.

 

Discentes: José Elias Antunes Neto; Maria de Lourdes Fanaia; Thiago Oliveira da Silva; e Valéria Pereira Moreira.

 

         PANDEMIA E POLÍTICA: Os perigos de um antagonismo.

          Dois mil e vinte talvez seja lembrado como o ano que não acabou. Depois dos fogos do primeiro dia do ano e do carnaval, uma das maiores festas populares do Brasil, o ser invisível, Sars Cov 2, o coronavírus, causador da doença COVID-19, colocou o mundo de joelhos. Sem ter para onde correr, o ser humano, independentemente, da estratificação social, teve que se recolher para evitar o contágio e, com isso, tentar o que as autoridades de saúde propunham, que seria achatar, ou tentar achatar, a curva de crescimento dos casos com internações e óbitos. Enquanto o número de mortes não parava de crescer, o debate sobre como combater a doença caminhou para atender interesses políticos, levando a uma “guerra” de informações e desinformações que complicaram ainda mais um momento que exigia clareza sobre o assunto. Em meio aos interesses políticos, a população perdeu o rumo, vivendo, talvez, a pior experiência depois da segunda guerra mundial. As notícias falsas, fake news, que já faziam parte do cotidiano nas redes sociais, tomaram ainda mais corpo, sendo replicadas, inclusive, por políticos e autoridades do mais alto escalão dos governos. Em “A Era da Pós-Verdade”, o autor Ralph Keyes lembra um caso recente, que já entrou para a história política mundial: “Quando, durante um debate primário, John Kerry referiu-se a uma pesquisa inexistente que colocava a sua popularidade bem acima da de Hillary Clinton, um assessor disse mais tarde que Kerry ‘se expressou mal’ (KEYES, R. 2028). Seria uma forma diferente de olhar a verdade? O que se percebe é que as notícias falsas são publicadas por quem entende do assunto abordado, capaz de criar a sua versão com dados reais, porém, falseados, e compartilham com grupos que acreditam em “notícias” dessa natureza”, que, em geral, são bem escritas, obedecendo a mais perfeita estrutura jornalística. Grupos que pensam da mesma forma, tomam como verdadeiras as notícias falsas e as republicam, transformando em inimigos os que pensam diferente. Dessa forma, podemos entender tal situação conforme define o dicionário de política: “Entre as mais conhecidas e discutidas definições de Política, conta-se a de Carl Schmitt (retomada e desenvolvida por Julien Freund), segundo a qual a esfera da Política coincide com a da relação amigo-inimigo. Com base nesta definição, o campo de origem e de aplicação da Política seria o antagonismo e a sua função consistiria na atividade de associar e defender os amigos e de desagregar e combater os inimigos”.

          Talvez nem mesmo João Cabral de Mello Neto, autor de “Morte e Vida Severina”, teria facilidade para descrever o drama, que se instaurou na cabeça de cada cidadão tomado de surpresa pela pandemia, pois o retirante em “Morte e Vida Severina”, ainda, carregava consigo um pouco de esperança, saindo do sertão nordestino rumo ao litoral para fugir da morte precoce; porém, diante do invisível, não se tinha para onde ir: “O que me fez retirar não foi a grande cobiça, o que apenas busquei foi defender minha vida de tal velhice que chega antes de se inteirar trinta; se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda”.1

                                                                                                                                                                         

Texto de Morte e Vida Severina foi adaptado para a TV em 1981. Foto: TV Globo/Reprodução

        

 
Texto de Morte e Vida Severina foi adaptado para a TV em 1981. Foto: TV Globo/Reprodução Não se trata aqui de romantizar a questão, nem mesmo sofismar a verdade, porém apontar que há uma verdade incomparável, a “morte” que ronda principalmente a população na linha ou abaixo

 

 

 da linha da pobreza, situação recorrente no Brasil, conforme, afirma o IBGE em notícia publicada em junho de 2019: “Em dois mil e dezoito, o país tinha 13,5 milhões de pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 145,00 ou U$S 1,9 por dia, critério adotado pelo Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza”. A pesquisa publicada em dois mil e dezoito traz outros dados, como o número de pessoas que vivem na extrema pobreza: “Esse número é equivalente à população de Bolívia, Bélgica, Cuba, Grécia e Portugal. Embora o percentual tenha ficado estável em relação a 2017, subiu de 5,8%, em 2012, para 6,5% em 2018, um recorde em sete anos”.2

A política e suas influências do entendimento do certo ou errado quanto à pandemia.

          Passamos a partir daqui a trabalhar detidamente nos efeitos da política de governo e suas influências junto à pandemia. Primeiramente, fomos buscar uma definição clássica para o termo política e a encontramos no Dicionário de Política: “Derivado do adjetivo originado de pólis (politikós), que significa tudo o que se refere à cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles, intitulada

Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado e sobre as várias formas de Governo, com a significação mais comum de arte ou ciência do Governo, isto é, de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmente discrimináveis, sobre as coisas da cidade”3.

Evidente que propomos uma perspectiva de governo democrático. A democracia, na etimologia da palavra, significa poder do povo; pois demos, em grego, quer dizer povo e kratos, poder. Ou seja, o poder que emana do povo. Sendo assim, democracia presume que o povo tenha poder. Um exemplo disso é o exercício do voto. No Brasil, o voto é indireto, o cidadão não escolhe o projeto que ele quer aprovar, mas sim um político ou políticos para representá-lo, ficando então ao cidadão a reponsabilidade de fiscalizar o trabalho daquele por ele escolhido; mas, para tanto, necessário se faz conhecer os seus direitos, enquanto cidadão. Caso contrário, quem exerceu o direito do voto, uma das expressões da democracia, corre o risco de se transformar em sujeito subalterno, sem os direitos garantidos por não ter o seu lugar de fala, sendo massa de manobra e força de trabalho: “A reprodução da força de trabalho requer não apenas uma reprodução de suas habilidades, mas também e ao mesmo tempo uma reprodução de sua submissão à ideologia dominante por parte dos trabalhadores, e uma reprodução da habilidade de manipular a ideologia dominante corretamente por parte dos agentes de exploração e repressão, de modo que eles também venham a prover a preponderância da classe dominante ‘nas e por meio das palavras [par la parole]’.”(SPIVAK, G, 2014). Na perspectiva de Spivac, a tragédia sanitária causada pelo novo coronavírus evidenciou muito mais o poder de quem está no poder e bem menos daqueles que os colocaram no comando da nação.

          O negacionismo iniciado pela classe política internacional pode ter sido uma das causas da perda de milhares de vidas. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, começou tratando a doença como sendo “o vírus chinês”, fechando inicialmente a fronteira com a China, quando o vírus entrou no país pela fronteira com a Europa. Trump ainda rompeu com a OMS, Organização Mundial da Saúde: “O mandatário norte-americano fez várias críticas à forma como o órgão vem lidando com a pandemia da COVID-19 e também atacou a maneira como a entidade lidou com o papel da China na questão do vírus”.4

        No Brasil, o presidente Jair Messias Bolsonaro amenizou os efeitos da doença chamando-a de “gripezinha” e, mesmo não sendo médico, prescreveu Cloroquina na porta do Palácio do Planalto como sendo a “panaceia” para o mal que dia após dia assolava o Brasil. Bolsonaro desrespeitou as determinações para se evitar a propagação da doença, como distanciamento social e o uso de máscaras, do próprio Ministério da Saúde; demitiu um ministro dessa pasta- e o seguinte, o qual pediu demissão, fê-lo por discordar de ordens dadas a ele pelo presidente- e deixou um general que não é médico respondendo pelo ministério. A mídia demonstrava que havia um desencontro entre o Governo Federal e os governos estaduais.

Jair Bolsonaro
 
Jair Bolsonaro

 

 Enquanto o palácio do planalto defendia a liberação do comércio, serviços e indústrias, os estados adotavam o isolamento social para tentar conter os avanços da doença e o assunto polarizava nas redes sociais. No dia oito de agosto de dois mil e vinte, o Brasil ultrapassou a marca das cem mil mortes oficiais, total que corresponde a seiscentas e cinquenta vezes a tragédia com o avião da companhia aérea Gol em dois mil e seis, no norte de mato Grosso.

Militares resgatam corpos em área onde caiu o Boeing da Gol, em Mato GrossoFoto: Divulgação/Bombeiros de Sinop

 
 
Militares resgatam corpos em área onde caiu o Boeing da Gol, em Mato Grosso Foto: Divulgação/Bombeiros de Sinop

Equipes da Força Aérea Brasileira trabalham no resgate dos corpos das vítimas - Divulgação Força Aérea Brasileira

 

          À época, entre a tripulação e passageiros, morreram cento e cinquenta e quatro pessoas e o mundo se comoveu, pois uma vida que se perde numa tragédia é o bastante para exigir a adoção de medidas urgentes das autoridades para que novas tragédias não ocorram: “A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

 
John Donne

         

           

O trecho do poema – Por Quem os Sinos Dobram-, escrito no século dezessete, traduz muito do que se passou na pandemia. John Donne nasceu em Londres, na Inglaterra e um dos seus poemas mais conhecidos retratou a tradição do sino da igreja, que anunciava as novidades como casamentos e até mesmo a morte de alguém na comunidade. O número das badaladas comunicava a idade da pessoa que partia. Neste contexto, há de se imaginar que o sino, possivelmente, não pararia de tocar numa cidade onde o número de óbitos pela COVID-19 tenha sido o maior do Brasil.

 
Corpos de vítimas de Covid-19 são enterrados em valas comuns, em Manaus. — Foto: Chico Batata/Divulgação

 

 

A negação aos fatos não deixou de existir, e no auge da pandemia, os governos passaram a adotar a flexibilização. Em reportagem apresentada no dia onze de agosto de dois mil e vinte, às onze da manhã, no telejornal MT1 da TV Centro América, em Cuiabá, a bióloga e doutora em ciências da Universidade Federal de Mato Grosso, Edna Harduim, explicou porque, principalmente, os jovens têm dificuldade para ficar em isolamento social: “Os seres humanos evoluíram conectados. Algumas substâncias que nós produzimos, estão envolvidas na construção de relacionamentos e na constituição de paz, e quando há diminuição de seus níveis, pode haver um aumento de estresse e, por isso, nós entendemos o desejo da aglomeração dos jovens”. Entretanto, a pesquisadora fez um alerta: “pouco tempo depois dessas saídas para uma liberdade teórica, né, tem resultado no aparecimento dos sinais e sintomas dessa doença, e o pior, havendo casos de contaminação e até de óbitos da família desses jovens, e nesse caso o isolamento será inevitável pela ocorrência da doença, da internação ou do óbito”. (Depoimento em 11/08/20200 em reportagem disponível na Globoplay <https://globoplay.globo.com/v/8768749/programa/>.

          Por fim, necessário se faz dizer que a desinformação no caso da pandemia foi um fenômeno mundial, com destaque para alguns presidentes de nações, como é o caso de Belarus, quando o presidente conhecido como o último ditador da Europa fez uma declaração em tom de brincadeira, mas que repercutiu negativamente: “Aleksander Lukashenko, o presidente do país, disse, em entrevista recente divulgada pelo canal local Belsat TV, que o povo bielorrusso “já sobreviveu a epidemias piores” e culpou a “mídia internacional por estar cobrindo a pandemia de forma equivocada”.5 Dois meses depois, ele foi infectado pela doença. Outros países também ignoraram a ciência e as orientações da OMS, conforme afirmou o portal de notícias Brasil de Fato: “Além de Bielorrússia e Brasil, só os chefes de Estado da Nicarágua (América Central) e do Tajiquistão (Ásia Central) mantêm uma postura de negação em relação aos riscos do novo coronavírus.”6

          Diante de um dos momentos mais difíceis, é possível acreditar que o mundo político não conseguiu enxergar a dor dos familiares de milhares e milhões, que perderam filhos e filhas, pais e mães, avós, tios e tias e muitos outros conhecidos durante a pandemia. Necessário que se façamos algumas perguntas: Será que menos gente teria morrido, caso a guerra fosse apenas contra o vírus? A classe política estaria interessada em transformar a tragédia mundial em votos? Teríamos tantas mortes, inclusive, das equipes de saúde caso a ciência fosse respeitada? A pandemia demonstrou o quanto os seres humanos são iguais; entretanto, fez aparecer ainda mais as desigualdades, fazendo o pobre, ainda mais pobre e mais vulnerável, consequentemente, recebendo um tratamento desigual também na pandemia, sentenciado a enfrentar filas nos hospitais públicos ou a morrer nos corredores das unidades de saúde lotadas. Uma das respostas para os diferentes, desiguais e desconectados e que mais sofrem em momentos impostos, também pela doença, buscamos em Canclini: “Formular os modos da interculturalidade em chave negativa é adotar o que sempre foi a perspectiva do pensamento crítico: o lugar da carência”. (CANCLINI, 2015). Somente o tempo trará o resultado para tantas perguntas, que ficaram para trás.

REFERÊNCIAS

CANCLINI, N. G. Diferentes Desiguais e Desconectados – mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora UFMRJ, 2015. P. 31.

KEYES, R. A ERA DA PÓS VERDADE – Desonestidade e enganação na vida contemporânea. Petrópolis, RJ Vozes, 2018. P. 21.

SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. P. 33.

1https://www.todamateria.com.br/morte-e-vida-severina/ (ACESSO: 17/08/2020).

2https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25882-extrema-pobreza-atinge-13-5-milhoes-de-pessoas-e-chega-ao-maior-nivel-em-7-anos (ACESSO: 16/08/2020)

3https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2938561/mod_resource/content/1/BOBBIO.%20Dicion%C3%A1rio%20de%20pol%C3%ADtica..pdf (ACESSO: 17/08/2020)

4https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/05/29/trump-anuncia-rompimento-dos-eua-com-a-oms-por-atuacao-durante-pandemia.htm(ACESSO:17/082020)

5https://veja.abril.com.br/placar/em-belarus-bola-ainda-rola-e-presidente-receita-vodka-contra-covid-19/ (ACESSO EM: 17/08/2020)           

6https://www.brasildefato.com.br/2020/05/02/o-que-esta-acontecendo-na-bielorrussia-unico-pais-europeu-que-nao-adotou-isolamento (ACESSO EM: 17/08/2020)

Comentários

  1. ACESSAR ;<https: //globoplay.globo.com/v/8768749/ programa.

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  2. Texto muito inteligente e interconectado, interessante trazer como as potências mundiais se comportaram, como os EUA, por exemplo. Uma pena que aqui as imagens não carregaram. Mas estão de parabéns!

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  3. Também as imagens não carregaram para mim, o que foi uma pena (mas eu olhei clicando uma a uma, e pude reconstruir a ideia da mensagem). Vocês trabalharam bem! Parabéns pela ideia e conteúdo produzido. Fica a dica de verificarem, para os próximos exercícios, como incluir as imagens sem erro

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  4. Excelente texto e conexões. Me parece pronto para um roteiro de documentário. Achei interessante a busca de referências mais ligadas aos "Estudos subalternos" (Canclini, Spivak, por exemplo).

    Um pouquinho mais de tempo pra entender o funcionamento da ferramenta blog, dará mais equilibro entre forma e conteúdo. Parabéns ao grupo!

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  5. Percebo que fizeram com esmero o levantamento do antagonismo conceitual e de ações dos gestores frente a pandemia. Mais preocupados com votos e populismo do que realizar o trabalho necessário e preciso no enfrentamento da Covid19.

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