Se COVID-19 é um vírus, o que teria a política a ver com isso?

 

Giulia Medeiros

Kleber Gonçalves Bignarde

Valéria C. Ferreira e Silva

 

 

O conceito de política é amplo e perpassa por uma porção diversa dos elementos da vida. É por meio da política que as decisões das coisas "comuns", ou seja, dos assuntos de interesse coletivo são tomados. A coisa pública como o transporte, a saúde, a educação, a cultura, assim como o preço da farinha e do feijão são instâncias discutidas, deliberadas e implementadas a partir da esfera política. Uma atitude quando embasada no propósito de questionar, comunicar ou transmitir uma visão de mundo, é política. Convencer o seu vizinho a economizar água na hora de lavar sua calçada é política. Ou seja, o exercício da política está atravessado em quase todas as relações, instituições e ações sociais. O que teria então a bendita Pandemia da Covid-19, a ver com a política? Apesar de ser comum ouvir pessoas dizerem que odeiam política, compreendendo a mesma, a partir da superficialidade de um debate restrito à corrupção e partidos políticos, enxergamos por política um conceito muito mais profundo e transversal.

A crise sanitária mundial que se instaurou no final de 2019, espalhando um vírus letal na população, evidenciou ao longo desses oito meses que estamos falando de um problema político, uma vez que, em cada continente, unidade federativa, cidade, bairro ou território, o vírus se manifestou de formas diferentes, apesar de suas propriedades serem as mesmas. Os debates sobre esse cenário são inúmeros, mas vamos elencar alguns dos fatores que, no nosso entender, estão atravessando politicamente a pandemia, em diferentes escalas.

O primeiro deles é a versão hegemônica que, num primeiro momento, culpabiliza a China pela transmutação do vírus, mostrando uma nítida disputa de narrativas da geopolítica. Essas manifestações ecoaram em diversos países, no Brasil diversas pessoas com fenótipos orientais relataram terem vivenciado desconforto e agressões verbais de preconceito1. Mesmo diante das novas análises que revelaram indícios de que existiam mostras da Covid-19 em outros países antes do mesmo se tornar uma epidemia em Wuhan, a narrativa que associa o vírus aos chineses permanece, sendo o Presidente Donald Trump, um dos principais anunciadores3.

Outra questão que tange o debate político é que ficou evidente a necessidade do Estado para que vidas pudessem ser salvas nessa histórica pandemia, no entanto, o que houve em alguns países, como o Brasil, foi um grande embate político a partir da narrativa de uma falsa oposição entre saúde versus economia. A indicação feita por epidemiologistas, infectologistas, pesquisadores, a Organização Mundial de Saúde e demais representantes do saber científico, foi de que o distanciamento social associado a uma higiene rigorosa seriam as mais eficientes medidas para frear a propagação do vírus. Contudo, distanciamento social implica em não ir ao trabalho, não usar transporte coletivo e não estar em nenhum espaço de aglomeração, isso, num país em que cerca de 40% das pessoas empregadas4 estão ocupando postos informais e sem acesso a uma política eficiente de seguridade social que pudesse garantir que a maioria da população pudesse respeitar o isolamento social. Nesse aspecto, o auxílio emergencial foi uma pequena vitória do parlamento brasileiro que conseguiu emplacar (mesmo com toda a burocracia do governo, atrasando as parcelas) um pouco de dignidade para a população mais vulnerável na crise sanitária. Aquelas e aqueles trabalhadores informais que dependiam de sua renda diária para manter o pão com ovo de cada dia, apesar das grandes filas para sacar o dinheiro, estariam jogados à sua própria sorte se não fosse o mínimo de direito que o Estado garantiu durante esses duros meses do ano de 2020. Para além disso, o auxílio emergencial vem assumindo um protagonismo político importante, sendo este agora apontado como um dos fatores responsáveis pelo aumento da popularidade do atual presidente da república5, apesar de suas falas negacionistas quanto a gravidade da pandemia.

Igualmente a esse fator político econômico, deficiências sanitárias que vêm sendo negligenciadas ao longo de décadas, condições precárias de habitação ou mesmo a condição de rua e a ausência de saneamento básico, sempre prejudicaram a condição de saúde do povo brasileiro. Acrescenta-se a isso, o desmonte sistemático do Sistema Único de Saúde, agravado pelas restrições orçamentárias impostas pela PEC do Teto dos Gastos e intensificado com a política ultraliberal de austeridade do governo atual agravaram a situação da pandemia no país. Ainda assim, o SUS demonstrou ser um verdadeiro Herói da população, salvando milhares de vidas mesmo com sua estrutura precária e sem investimento real para garantir os Equipamentos de Segurança (EPI's) dos profissionais da saúde e a quantidade necessária de respiradores e estruturas em geral. Muitas vidas foram perdidas por falta de médicos, falta de leitos e de medicamentos, ou seja, falta de políticas públicas eficientes para garantir o mínimo de dignidade nessa luta contra um inimigo invisível.

É nítido como a questão política perpassa por todos os elementos da crise sanitária mundial, seja de maneira global, seja de maneira específica, seja por meio da estrutura do capitalismo que arrebenta a corda sempre para o lado mais fraco: a população que precisa do seu trabalho diário para sobreviver, andar de transporte público, entregadores de aplicativo, moradores de rua, trabalhadores domésticos, balconistas de supermercado, a terceira idade, a população de risco tem cor, idade, gênero e classe.

Sendo isso tudo um problema político, no Brasil, o campo de políticas públicas que se expandiu no final da década de 1990 a partir de debates sobre o funcionamento das instituições estatais, especialmente do impacto das relações governamentais, do federalismo, das capacidades estatais e das burocracias na formulação e implementação de políticas públicas (MARQUES E SOUZA, 2016). Reside na área de políticas públicas, portanto, a função de compreender a ampla atribuição dos Estados e os tipos de intervenções na sociedade, seja na economia, seja na provisão de serviços públicos. A crise mundial tem revelado que modelos de Estados de bem-estar, com suas distintas formas de cobertura, importam sobremaneira nas formas como os governos têm enfrentado e mitigado a pandemia (BENDER, KALTENBORN e PFLEIDERER, 2013).

Segundo Madeira et al (2020), nesta perspectiva o estudo de Estados com sistemas de proteção universais, com amplas coberturas em seus sistemas de saúde, educação, previdência e assistência social revelam ter melhores condições de lidar com situações adversas como a que estamos vivenciando. Welfare states como o dos países escandinavos e o alemão, pela tomada de decisão antecipada, têm conseguido diminuir a curva de contágio, retardando o pico da doença e, com isso, reduzindo o número de mortos.

Compreendendo pelo modelo de Welfare states no Brasil, que existem fatores que dificultam a capacidade de resposta do Estado Brasileiro na pandemia, como a sua dimensão federativa, de natureza diversa e têm origem anterior ao surgimento da pandemia, as suas características do arranjo federativo e as desigualdades socioespaciais que potencializam a limitação de articulação e o desempenho dos governos. Outro fator é à necessidade de integração entre áreas da política pública e da articulação entre governos para o desenvolvimento de medidas mais efetivas de mitigação dos danos sociais, econômicos e sanitários decorrentes da COVID-19, e também o fator com um grupo de condicionantes que diz respeito à esfera da política propriamente dita, como supracitado, o atravessamento das tensões políticas de divergentes projetos políticos e disputas político-partidárias.

Lima, Pereira e Machado (2020), apresentam proposições frente a este quadro, tais como:

Para uma resposta abrangente e oportuna à pandemia, são necessárias ações no mínimo nos seguintes âmbitos: monitoramento detalhado da situação epidemiológica, com disponibilização ágil e transparente de informações necessárias às respostas governamentais; estratégias de comunicação claras junto aos vários grupos da sociedade; medidas de distanciamento social, para conter a transmissão do vírus e o crescimento dos casos nas diversas fases da pandemia; fortalecimento do sistema público de saúde, com articulação de ações em todos os níveis (vigilância à saúde, atenção primária, serviços de atenção às urgências e emergências e hospitais, incluídas as unidades de terapia intensiva); ações de apoio à economia e ao emprego; medidas de proteção social, especialmente voltadas às populações em situação de maior vulnerabilidade social e aos grupos mais atingidos pela doença. Diante do quadro de recessão mundial provocado pela pandemia, acrescente-se a necessidade de ações em médio e longo prazos voltados à recuperação econômica e melhoria das condições de infraestrutura (habitação, saneamento), de vida e de saúde das populações em países marcados por desigualdades, como os latino-americanos.

 

Há um consenso no debate que independente do modelo de federalismo brasileiro, o governo federal precisa desenvolver um papel ativo, de intensa cooperação entre as esferas de governo nos diferentes âmbitos da federação, em diversas frentes e setores. A coordenação na implantação das políticas é fundamental para potencializar a resposta do Estado à emergência sanitária, e assim evitar a propagação da doença, o seu prolongamento e suas sucessivas ondas, como também suas consequências econômicas, sociais e humanitárias.

Reconhecendo que no Brasil, por uma série de condicionantes, a uma tímida atuação federativa do Estado, como consequência surgem desafios numa conformação de comando articulado nas diferentes esferas tripartites e demais organizações, na distribuição clara de responsabilidades e competências entre os gestores públicos e no aprimoramento de mecanismos de cooperação intergovernamental, principalmente entre setores públicos e os diferentes grupos da sociedade, no controle da COVID-19 e nos efeitos da pandemia.

Por esses inúmeros exemplos e estudos em políticas públicas, se faz necessário ampliar as análises, diagnósticos e denúncias. E que segundo Madeira et al (2020) sem isso, aspectos sociais e políticos da realidade vivenciada por aqueles que estão lidando diretamente com o vírus (pesquisadores, profissionais da saúde e outros profissionais essenciais) não seriam postos a nu. E neste momento o rei está verdadeiramente nu (e contaminado?).

 *** 

[1] Conferir: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/em-meio-a-surto-de-coronavirus-orientais-no-brasil-relatam-preconceito-e-desconforto.shtml

[2] Conferir: https://falauniversidades.com.br/coronavirus-racismo-e-xenofobia-com-a-comunidade-asiatica/

[3] Conferir: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/07/06/china-causou-grande-dano-aos-eua-e-ao- mundo-diz-trump.ghtml

[4] Dados disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes ao mês de janeiro de 2020.

[5] Conferir: https://valor.globo.com/live/noticia/2020/08/14/auxilio-contribui-para-alta-de-popularidade-de-bolsonaro-diz-moreira-do-somos70porcento.ghtml

 

Referências bibliográficas:

BENDER, Katja; KALTENBORN, Markus; PFLEIDERER, Christian (Ed.). (2013), Social protection in developing countrie Reforming systems. Routledge.

LIMA, L.D. et al. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. ESPAÇO TEMÁTICO: COVID-19 – CONTRIBUIÇÕES DA SAÚDE COLETIVA, Cad. Saúde Pública 2020;

MADEIRA, Ligia; PAPI, Luciana; GELISKI, Leonardo; ROSA, Taciana. Os estudos de políticas públicas em tempos de pandemia, Blog DADOS, 2020 [published 17 April 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/os-estudos-de-politicas-publicas-em-tempos-de-pandemia/

MARQUES, Eduardo; SOUZA, Celina. (2016), “Políticas públicas no Brasil: avanços recentes e agenda para o futuro”. In: AVRITZER, Leonardo; MILANI, Carlos; BRAGA, Maria S. (Orgs.). A ciência política no Brasil: 1960-2015. Rio de Janeiro: FGV Editora; ABCP.


Comentários

  1. Muito interessante texto. Poderia, de fato, estar em uma coluna de jornal. Todos os alunos do grupo conseguiram expressar pontos de vistas relacionados com seus objetos de pesquisa?

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    1. Creio que sim! Para esse texto mudamos a dinâmica e conseguimos fazer uma articulação mais interessante.

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  2. Boas análises. A discussão sobre o papel/função do Estado brasileiro permanece longe de estar superada; ainda mais em tempos de crise sanitária/administrativa como a que vivemos atualmente, em 2020.

    Num momento em que profissionais como os ligados ao SUS, aos Correios, ou à CEF, por exemplo se mostraram mais do que "essenciais", volta a pauta na grande imprensa do "peso do funcionalismo público" nas finanças públicas. Será que não falta uma real democratização da discussão sobre o que realmente parece deficitário nesse país?

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  3. A pandemia tem interferido na política nacional na medida em que é necessário a intervenção direta do estado, através de ações publicas específicas principalmente na saúde, gerando grandes movimentações financeiras para combate à pandemia.

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  4. Muito interessante a abordagem sobre a profundidade e transversalidade que a politica tem como essência, é muito comum mesmo ouvir que as pessoas não suportam mais a politica principalmente na atualidade. Parabéns pessoal muito bom.

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