Algumas percepções dos impactos da Covid-19 no setor cultural
Alex Paulo Teixeira de
Souza
Glaucos Luis Flores
Monteiro
Walker de Barros Dantas
Por volta de 1550, era das grandes navegações e da
renascença na França, Montaigne, o filósofo, já prescrevia para uma boa
educação aristocrática, entre outras coisas, a viagem e o convívio com outros
homens e culturas de modo a trazer de lá “os humores dessas nações e seus
costumes; e para esfregar e polir nossos miolos contra os dos outros” (de
Montaigne, 2010).
Para ele o melhor remédio contra os males do hábito e do
pensamento preconceituoso era empreender uma viagem (que àquela época era
sempre um risco) para uma cultura diferente donde as vantagens (para ele
menores) seriam conhecer alguns fatos úteis na conversação da corte, mas
principalmente porque poria à prova aquilo que julgamos certo e imutável no
nosso modo de viver.
Das diversas atitudes erradas ou incompatíveis com a
seriedade de uma emergência sanitária que o governo brasileiro pode cometer
desde março deste ano, e que mais agravarão a situação no médio e longo prazo,
em nossa opinião, estariam não haver mantido o ministro da saúde e não haver dado
voz a especialistas. Assim como politizar o uso de máscaras, imitando uma
grande tendência individualista corrente nos Estados Unidos (Vox, 2020).
No caso de manter uma boa comunicação com o público, o que
houve foi um erro, porque está claro em qualquer cartilha das boas relações
públicas e boa comunicação em tempos de crise que as atualizações sobre a
pandemia deveriam ser expressas publicamente por uma pessoa da área, seja das
relações públicas que conversaria diretamente com especialistas, senão pelos
especialistas em si, e que dali se apresentem fatos claros e inequívocos sobre
o andamento e as ações do governo no combate à doença.
Como tem sido característico da política feita nos últimos
anos, no entanto, o uso de factoides e fake News na internet somada à falta de
empatia e concordância entre os diversos níveis de tomada de decisão do
governo, incluindo aí um bate-boca entre os governadores e o presidente em fins
de março, levou não apenas à perda do ministro da saúde, mas de dois; e consequentemente
a um país sem ministro da saúde por 125 dias, no que pode ter sido o período de
auge das infecções ao longo de todo o território brasileiro.
Em relação ao uso de máscaras e à clara tentativa de
politização do uso delas, tanto maior é o dano desta atitude quanto mais se
conhecem suas implicações a médio e a longo prazo. Afinal, é amplamente
conhecido o seu caráter protetor (ainda que apenas em relação a outras medidas
de higiene), mas pouco é comentado sobre seu caráter social: quem as usa, em
meio à uma pandemia de uma doença quase que exclusivamente transmitida pelo ar,
não procura apenas proteger a si mesmo, mas também ao outro; segundo diversas
pesquisas na área mesmo máscaras caseiras cumpririam esse papel (Ministério da
Saúde) — e tudo indica que o baixo índice de contágio no Japão, Coréia do sul e
em outros países da Ásia seja em grande parte devido à cultura corrente de usar
máscaras cirúrgicas em público. Soma-se a isso a testagem em massa e
sistematização de dados individuais cruzados com geolocalização e temos algo
próximos a receita do sucesso destes país em lidar com a crise.
Novos questionamentos podem ser levantados, como a questão
da privacidade do indivíduo e seus dados de geolocalização (BBC brasil), assim
como o direito de não usar máscara, ou ao menos não obrigatoriamente. Ainda
assim dificilmente se encontram argumentos para, vivendo em sociedade, abrir
mão de uma medida de toda simples e que pode proteger o próximo. Certamente
fica impossível à luz dos princípios cristãos tão alardeados pelos mesmos
negacionistas da Pandemia e das medidas recomendadas para contê-la.
Eventualmente se argumentará, talvez, que o direito
individual sobre o qual a democracia e o bem-estar de direito é fundado exige
que tais limites sejam respeitados — que a cultura oriental é diferente e
justamente por isso não pode ser implementada (Quartz); no que Montaigne, no
século XVI certamente discordaria, como discordou já na sua época da maneira
obtusa com que os franceses se portavam diante do desconhecido e exótico, como
ele indica nessa passagem de Sobre os Canibais onde compara o ritual antropofágico
dos índios Tupinambás com a tortura que a Igreja realizava à época das
Inquisições:
Não fico triste por observarmos o horror barbaresco que há em
tal ato, mas sim por, ao julgarmos corretamente os erros deles, sermos tão
cegos para os nossos. Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que
em comê-lo morto, em dilacerar por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio
de sensações, fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagado pelos
cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca memória, não
entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e compatriotas, e, o que é pior, a
pretexto de piedade e religião) do que em assá-lo e comê-lo depois que está
morto.
de Montaigne, Michel. Os ensaios: Uma seleção.
Penguin-Companhia. 1ª Edição (29 outubro 2010)
Talvez com o passar do tempo ficará mais fácil para os
historiadores denotarem quais foram as tomadas de ação salutares e quais não
foram. A dificuldade de estar em meio à crise como essa é justamente a de que
sistematicamente todas as plataformas e recursos possíveis para se manter e ter
segurança para si e para a própria família começam a colapsar e rapidamente um
problema cultural é também um problema de saúde além de político econômico.
Por outro lado, um crise de dimensão planetária como essa
nos permite ter uma perspectiva diferenciada em relação ao início do
acontecimentos — naquilo que foi chamado já de tempo impossível pela
artista indiana Sindha Agha (Youtube, Vox), por ser um tempo que está além de
nossa capacidade de medir e que escorre pelos nossos dedos ao longo de todo o
tempo de isolamento.
A comoção com a alta taxa de mortos na Itália que tomou o
país, por exemplo, se parece a mais de um ano ao passo que foram a meros nove
meses; essa perspectiva permite que arrisquemos com boa margem de acerto quais
medidas foram boas para a sociedade até agora. E não foram poucas. Medidas como
empresas de televisão abrirem seus canais a cabo para informar sobre a
pandemia; empresas de livros dando livros de graça para incentivar a leitura e
o isolamento; o fechamento antes mesmo de ser imposto de vários comércios. Mas
não só isso.
As lives começaram a se tornar uma rotina, e artistas de
peso passaram a dar show gratuitos para quem quisesse ver. Desde Sandy e Junior
a Caetano Veloso, Gilberto Gil e Marilia Mendonça, eles foram responsáveis, da
mesma maneira que a cantora de ópera e o violinista nas sacadas dos prédios da
Itália fizeram para animar seus vizinhos, por trazer a verdadeira face caridosa
e solidária do povo brasileiro nesse momento tão difícil. Também houveram
manifestações onipresente de apoio aos profissionais de saúde nas redes sociais
assim como aplausos nas sacadas; o hotel Deville em Cuiabá (Youtube), também,
faria uma ação junto com a orquestra sinfônica do estado de apoio aos
necessitados e manifestação de compaixão.
A crise, no entanto, permanece, e com mais de quatro milhões de casos confirmados no país e sinais de uma segunda onda de infecções assolando a Europa enquanto esse texto é escrito, todo cuidado é pouco. A solução ideal para a crise representada pela vacinação em massa ainda está distante e, como discutido no texto anterior sobre atravessamentos econômicos, (https://disciplinametodosufmt.blogspot.com/2020/09/a-estagnacao-social-e-economica-no.html), para o Brasil, talvez não seja a única coisa que seja necessária. Artistas estão entre os mais afetados pela crise econômica, que se não começou somente em março decerto foi agravada com a Pandemia; um deles é o Junior Magrão, baterista profissional há mais de 30 anos e que compartilhou seu depoimento com a gente de modo a dar uma perspectiva atual do momento incerto pelo que passa a classe artística em nossa região:
Júnior Magrão - Músico
Assim como ele muitas pessoas da área cultural de todo o
mundo estão em apuros; cinemas fecharam e séries foram adiadas. Um exemplo
recente de como o vírus transcende barreiras econômicas e culturais foi a
contaminação do Robert Pattinson no set do novo filme do Batman; filmes que
antes iriam passar pelos cinemas estão indo direto para o streaming; artistas
de teatro estão improvisando com peças feitas especialmente para internet. Também,
foram perdidos, em sete meses de pandemia, vários artistas, como o compositor
Aldir Blanc, o escritor Sérgio Sant'Anna e o cantor Parrerito entre tantos
outros.
Talvez, se as recomendações dos psicólogos valerem para
nações como valem para indivíduos, o Brasil, com mais de cem mil motos, não
tenha tido a chance de parar para lamentar e ter um período de luto apropriado.
Talvez a maior crise do novo século esteja incubando as oportunidades que os
verdadeiros aristas são mestres em dominar, que é a de transformar dor em
beleza; e sofrimento em verdade. Talvez a falta de horizonte que se manifesta
em nossos peitos, afinal, seja sublimada em novas formas de viver e de ser
brasileiro. Talvez, só talvez. Mas que, com isso ao menos, não estamos, afinal,
entregues nem ao nada nem ao esquecimento.
REFERÊNCIAS
A quick
history of why Asians wear surgical masks in public. Acessado em
20/09/2020. QUARTZ. Disponível em: https://qz.com/299003/a-quick-history-of-why-asians-wear-surgical-masks-in-public/
Center for
disease control and prevention. Site do CERC. Acessado em 20/09/2020. Disponível
em: https://emergency.cdc.gov/cerc/manual/index.asp
Cia Sinfônica Cuiabá no Hotel Deville — Amazing Grace.
Acessado em 20/09/2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6m8fOII9vrw
Coronavírus: uso de dados de geolocalização contra a
pandemia põe em risco sua privacidade? BBC Brasil. Acessado em 20/09/2020.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52357879
Covid-19: qual o risco de contágio que cada atividade
oferece? BBC Brasil. Acessado em 20/09/2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54014416
de Montaigne, Michel. Os ensaios: Uma seleção. Penguin-Companhia. 1ª Edição (29 outubro 2010)
Grupos de teatro criam peças especialmente para a internet.
Globo. Acessado em 20/09/2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rioshow/grupos-de-teatro-criam-pecas-especialmente-para-internet-1-24433084
How the
pandemic distorted time. Canal da Vox. Acessado em 20/09/2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-S_f-huz-EU&list=PLJ8cMiYb3G5dBbOh_8kPN5s5aJHt1UCwn&index=25
Lupa na Ciência: Uso de máscaras contra Covid-19 deve ser
combinado a outras medidas protetivas. Revista Piauí. Acessado em 20/09/2020.
Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/04/24/lupa-ciencia-mascaras-covid-19/
Máscaras caseiras podem ajudar na prevenção contra o
Coronavírus. Site do Ministério da Saúde. Acessado em 20/09/2020. Disponível
em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46645-mascaras-caseiras-podem-ajudar-na-prevencao-contra-o-coronavirus
The Batman: Robert Pattinson testa positivo para a Covid-19.
Tecmundo. Acessado em 20/09/2020. Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/cultura-geek/177372-the-batman-robert-pattinson-testa-positivo-covid-19.htm
Why face
masks became political in the US. Vox.com. Acessado em 20/09/2020. Disponível
em: https://www.vox.com/2020/8/25/21401316/face-masks-became-political-us-coronavirus-trump
O grupo, como em todos os exercícios, mostra o seu ponto de vista politizado e embasado. Muito boa leitura. Sugiro revisão textual pois alguns detalhes de digitação podem ser corrigidos
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